quarta-feira, 20 de maio de 2009

João teixeira Soares

“João Teixeira Soares”
Discurço proferido por Eugenio Gudin no batismo do avião 'João Teixeira Soares"


... Eu lhes pediria hoje então um lugar de destaque para inscrever em letras de ouro o nome de João Teixeira Soares e proporia como inscrição o conceito que sobre ele formulou um seu contemporâneo, o ilustre engenheiro Getulio das Neves, nestes termos:

“Não há talvez entidade alguma de nossa classe a que regiões tão extensas de nosso território devam tão grandes serviços”.

... Em nenhuma região, porem, a escalada se apresentava mais difícil do que no Paraná. Cristiano Otoni, que no Rio de Janeiro, conhecera as agruras da luta e conseguira vencê-la, atônito ante o obstáculo tremendo da escalada no Paraná, aconselhou que se recorresse á engenharia estrangeira. E assim se fez. Mas a hostilidade da natureza não se limitava á altura da barreira que ela antepunha ao homem.

Por um refinamento de maldade, ela enchera a estreita faixa do litoral, de onde as expedições humanas haviam de partir, de um exército de mosquitos escondidos nos brejos, quais ninhos de metralhadoras a exterminar os intrusos com rajadas de malaria. Diante desta dupla hostilidade, os engenheiros estrangeiros abandonaram a partida.

Foi nesta conjuntura que o ilustre engenheiro Francisco Pereira Passos, diretor da Empresa da Estrada de Ferro do Paraná, apelou para um jovem colega brasileiro, cujos predicados de caráter e de inteligência já lhe haviam chamado a atenção.

Honra seja ao autor da escolha, porque só os homens de valor sabem reconhecer valores. Só o igual – dizia Goethe a Eckerman – pode reconhecer o seu igual.

Em uma memorável batalha de três anos, em que não se sabe o que mais admirar, se a perícia do engenheiro, se a firmeza do caráter, se a perseverança indômita, o jovem engenheiro brasileiro, com um grupo de valorosos companheiros, a cuja frente se encontrava Guilherme Benjamin Weinschenck, derrotou o Gigante e escalou a serra. Tinha então, JTS, 34 anos.

“São vultos deste porte que simbolizam a grandeza e a energia de uma raça”.

Tendo como única remuneração material um modesto ordenado, não era o interesse que impulsionava o grande lutador. Dentro de sua alma ardia àquela chama de espírito publico que só se recebe de Deus.

Poucos homens tenho conhecido para quem o simples enunciado de um problema nacional tivesse o dom de fazer vibrar-lhe a alma como a JTS. Sentia-se nestas ocasiões, que ele congregava todas as suas reservas de energia e entusiasmo. Seu patriotismo não era feito de um vago idealismo, nem de hinos á grandeza de seu país, e sim de uma paixão incontida pela solução de seus grandes problemas.

JTS não descansou sobre os louros de sua vitória. Tinha conseguido galgar a serra do Paraná, mas o Brasil continuava a ser um arquipélago. De São Paulo para o Sul não havia ligação ferroviária. O problema era de vulto a seduzir JTS. Pôs ele, então, o prestigio que adquirira no Paraná, com todas suas energias, ao serviço da ligação Sul.

Mas, já desta vez, não era simplesmente o engenheiro chamado a executar um empreendimento que já dispunha dos recursos necessários. Tratava-se de criar. Só o espírito de iniciativa, a coragem e a confiança conseguiriam obter os recursos. As responsabilidades eram maiores e mais vasto o campo de ação. A energia, a decisão e a capacidade técnica não eram os únicos predicados necessários para levar a cabo à empresa. Requeria-se, já então, esse outro grande predicado, que é um misto de lucidez, equilíbrio e de discernimento, a que os ingleses chamam de ‘sound judgment’; era preciso persuadir aqueles que dispunham dos capitais necessários, infundindo-lhes confiança e coragem. Tão grande foi a capacidade de persuasão de JTS, tão cristalina a sua probidade, tão sincero o ardor de suas convicções e de sua confiança na empresa, que os banqueiros que examinaram a proposição garantiram o suprimento do capital necessário, mesmo sem estudos prévios. Em cartas que depois lhe escreviam, diziam os banqueiros que, para eles, a empresa não era a Cia. Chemins de Fer du Sud-Ouest Brésilien e sim a empresa Teixeira Soares. Foi assim que se iniciou a construção da rede de estradas de ferro que ligam São Paulo ao extremo Sul do Brasil.

Seguiram-se a Vitória Minas, que hoje permite ir buscar o minério de Itabira, a Noroeste que incorporou Mato Grosso ao Brasil, a Estrada de Ferro Goiaz, na marcha para Oeste.

Não havia empresa ou problema ferroviário que não fosse buscar conselhos e orientação junto ao grande mestre, que estendeu sua preciosa colaboração á organização da Leopoldina Railway, das Estradas de Ferro do Rio Grande do Sul, dos portos de Vitória e de Rio Grande e outros grandes trabalhos.

Melhor do que eu Percival Farquhar, esse grande amigo do Brasil, que lhe deve tão grandes serviços, poderia dizer-vos das atividades de JTS nos vastos empreendimentos da Brasil Railway.

Dizia bem, portanto, Getulio das Neves que não havia brasileiro que tivesse prestado tão grandes serviços a tão extensas zonas do território nacional. Só Mauá, cuja estatua hoje se defronta com a de JTS, podia apresentar folha de serviços de tão alta valia.

Homem morigerado, sem hábitos nem ambições de luxo e de gozo, JTS promotor de tantas e tão grandes empresas, nunca fez fortuna e ao fim de 50 anos de trabalho pouco mais deixou á família do que um grande nome admirado e venerado pelo Brasil inteiro.

Engenheiro de idéias gerais, JTS teve sempre a clara visão da função econômica das estradas de ferro. Em artigos, em entrevistas, em cartas aos homens públicos, JTS combateu incessantemente a construção de estradas de condições técnicas precárias, cujo custo segundo a lei então vigente, não deveria exceder de 30 contos por quilometro, fossem quais fossem os acidentes do terreno, a finalidade e o volume da produção a transportar. Eram as linhas a que JTS chamava de linhas de guarda-livros, porque nelas o critério dos contabilistas se sobrepunha ao dos técnicos e economistas.
Ele levantou bem alto seu protesto contra essa nefasta política ferroviária, cuja única vantagem consistia em abrigar os homens públicos sem coragem cívica, das acusações que lhe poderiam advir do custo forçosamente mais elevado de linhas bem construídas. Suas cartas a Julio de Castilhos sobre a São Paulo-Rio Grande constituem um vibrante apelo nesse sentido, que infelizmente não encontrou eco nas altas esferas da Administração do país.

Mais tarde, já no ultimo quartel de sua vida, quando os progressos do motor de explosão restauravam o prestígio das estradas de rodagem, derrocado um século antes pelas estradas de ferro, JTS foi o grande palatino do novo sistema de transportes que permitia vencer mais facilmente, com rampas maiores e curvas mais estreitas, os nossos acidentes topográficos. Ainda aí foi ele o pioneiro do principio da coordenação dos transportes terrestres, pelo qual se procura estabelecer a cooperação econômica dos dois sistemas, substituindo-se a estrada de ferro pela de rodagem nas linhas de tráfego pouco intenso e evitando-se a concorrência e o desperdício nos grandes troncos.

Ao paraninfar uma turma de engenheirandos da Escola de Mecânica e Eletricidade de São Paulo, JTS, já aos 73 anos, dizia que “só o avião, o automóvel e o telegrafo sem fio poderiam satisfazer as aspirações das gerações modernas”.

Ele foi o primeiro concessionário de um serviço de aviação comercial no Brasil. Por decreto 13.244 de 23 de outubro de 1918, o governo concedeu a JTS e a Antonio Rossi, permissão para explorar um serviço de transportes por avião entre as principais cidades do Brasil, tendo-se chegado a importar alguns aparelhos Caproni e vários Hidro-Glisseurs.

JTS sofreu a sedução da terra, e adquiriu a fazenda Santa Alda em Minas Gerais. A lembrança dessa fazenda é para mim uma das maiores recordações que guardo desse grande amigo. Mais uma vez, porem, JTS pensava mais em seu país do que em si, e não houve experiência que se pudesse fazer que ele não tivesse tentado. Em um artigo publicado na Íllustration de maio de 1911, o seu amigo Georges Clemenceau referia-se a JTS como “um apaixonado pela terra e pelas frutuosas alegrias que ela pode dar”.

Mas tudo isso não lhes pinta ainda quem era JTS, que eu tive a ventura de conhecer e venerar. Se eu dispusesse de uma só palavra para definir JTS, eu pronunciaria a palavra BONDADE. Ele era um desses homens raros que vem á terra como um emissário divino, para praticar o Bem, o Amor, e a Caridade.
Ele era simples, modesto e bom. Sua bondade não sabia distinguir os grandes dos pequenos. Aos que dele se aproximavam para pedir alguma coisa, ele dava a impressão de que lhe haviam feito um favor. Não era polidez, era bondade.
Conheceu várias vezes as agruras da injustiça, mas morreu sem saber o que era o rancor. Ninguém podia dele aproximar-se sem sentir a sedução da simplicidade e da sinceridade de sua generosa acolhida.

Só o Brasil podia dar um homem tão bom.

Já no fim da vida, JTS levara um seu neto aqui presente, á casa de Clemenceau, e pediu-lhe que estendesse ao neto sua simpatia e a amizade que dava ao avô. Clemenceau pôs, então, a mão ao ombro do menino (Alberto Soares de Sampaio) e disse-lhe que prometia fazer o que lhe pedia JTS, porque ele fôra o homem melhor que ele conhecera na vida.